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Bom dia. Hoje é 13 de outubro de 2024. Aqui em Itajaí, manhã nublada. O calor porvir adiado pela brisa agradável. Quando o sol se descobre, ilumina o exato ponto do sofá onde eu vim me sentar, tentativa indecisa de combater a deficiência de vitamina d, sempre comigo. A previsão diz que o tempo vai continuar mais ou menos assim pelo resto do dia e amanhã também. Tentei elaborar uma manhã relaxante para desacelerar a passagem do dia, alongar as últimas horas de férias. Sexta sonhei com uma série de figurantes, familiarmente desconhecidas habitantes dessa terra noturna coberta pela névoa das lembranças falhas, me avisando que era o fim das minhas férias. Eu sei, porra, me deixem em paz. O padrão do inconsciente pode até ser a comunicação por símbolos, mas o meu gosta de falar, acordo com várias frases soltas na cabeça. Achei uma breve sequência de poses de yoga para iniciantes, no youtube, e fiz isso assim que acordei, depois de dar a ração da Joyce. Tomei um banho morno, descobri o condicionador. Estou como um grego antigo besuntado de azeites aromáticos, sem a parte do óleo. Fiz um suco verde que aprendi na Quinta da Gávea com um liquidificador recém comprado e me pergunto como vivi tanto tempo sem esse eletrodoméstico. Agrião, gengibre, maçã, limão, uma ótima mistura para acordar um estômago vazio. Escuto uma coletânea suave com todas as canções de Margo Guryan, cuja história de vida inspirou uma ficção que ainda não comecei a escrever. Até agora, um bom dia, tento não olhar o relógio. Quem sabe passe assim até anoitecer.
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Cheguei em uma parte da estrada cheia de árvores, fazendas de ruminantes pastando. A ansiedade da noite anterior tinha se dissolvido como costuma me acontecer quando estou em movimento. Eu queria que me viesse um poema, como nos velhos tempos. Um verso que levasse a outro. Tinha comigo o Nuvens de Algodão, do Abbas Kiarostami, aquele diretor sinônimo do termo “filme iraniano” tão utilizado para o merecido escárnio dos cinéfilos.
Uma velha monja toma o café da manhã sozinha barulho de chaleira fervendo A abelha permanece indecisa entre milhares de flores de cereja A luz do luar derrete o fino gelo de um velho rio.
Uma sequência de pseudohaicais, despreocupados, na tradução, com forma. A pérsia e a arábia têm suas próprias tradições poéticas, antigas e presentes em todas as formas de escrita, da filosofia à medicina. Abbas Kiarostami consegue formular poemas como polaroids sensoriais, captura os movimentos discretos das coisas. Passei a viagem o invejando, tentando sem sucesso o imitar, em busca de qualquer visão, como se eu precisasse encontrar uma luz para o meu estado de inércia. Aquelas árvores, aquela vaca, aquela estrada de terra que desvia da rodovia e leva a lugar nenhum. Onde estava o tal do Buda?
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Perdi a cidade. Esperava por uma parada específica, uma estação. Rodeio é tão pequena que não tem nada disso e é atravessada em cinco minutos. Avisei o motorista e ele me deixou na divisa com o próximo destino. Avisei o Cristiano, dono da pousada, que veio me buscar e me deixou num restaurante, para o almoço. Depois subimos até onde eu passaria aquele fim de dia e mais um dia inteiro. Entrei no chalé. Ele me mostrou as coisas, a varanda, uma cafeteira, as tomadas, explicou onde ficava a biblioteca e onde, se eu fizesse questão, poderia fumar. Mas eu fiz como tinha dito que ia fazer, não levei minha parafernália de fazer cigarros. Ia passar pelo menos dois dias de purificação, como um favor para meu corpo, breve férias de mim para comigo mesmo, férias dos meus hábitos. Abro uma janela e sento de frente para ela, numa bancada, com um caderno e uma caneta. Árvores e mata densa, um gato mia em algum lugar. Quem quer tenha dito que a floresta é mais silenciosa que a cidade mentiu. Sou tomado por uma paz deslocada. Pela primeira vez em três anos, perco o controle e começo a chorar, não do meu jeito preso. Houve uma liberação sem precedentes, lágrimas e mais lágrimas pelas próximas três horas. Sem tristeza, sem alegria. Uma combinação de emoções desconhecidas. Eu queria parar, voltar ao meu normal. Pra onde tinha ido minha habilidade automatizada de engolir o choro? Era isso, esse hábito, o responsável pela liberação? Segurei por tanto tempo, especialmente esse ano.
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Margo Guryan é diferente do resto do pop barroco - estilo dominante dos anos 1960, que inclui uns nomezinhos meio obscuros hoje em dia, tais como Nilsson, Donovan e os Beatles. Aluna de alguns dos principais nomes do jazz, entre os quais Ornette Coleman, Max Roach e Bill Evans, ela era principalmente uma pianista e compositora. Fez canções que foram gravadas por Mama Cass, Astrud Gilberto e mais tantas gentes, músicas que talvez nós já tenhamos ouvido sem saber quem as compôs. Nos anos 1960, algum desses professores do jazz mostra pra ela o Pet Sounds, dos Beach Boys, como se dissesse: por que você não entra nessa? Ela compõe uma primeira música pop, depois outras, consegue um contrato com uma gravadora e, em 1968, lança Take a Picture [Tire uma Foto]. Uma das ideias da gravadora foi usar fitas para duplicar a voz dela, dar aquele efeito de coro harmonizado tipo Beach Boys, mas com os arranjos dela, que dão umas voltas curiosas entre o jazz e o blues, para além do que é esperado nessa linha do pop, quando não entra no soul e no disco (antes da música disco existir). Em particular, a última música de Take a Picture, Love, começa com uma discussão estranha entre bateria, flauta e piano, quase um free jazz, improviso instrumental de suavidade caótica. Então ela vai pra psicodelia e, antes do vocal entrar, cai no soul. Tudo isso em menos de quatro minutos. É genial. Fofo sem ser açucarado, romântico sem deixar cegar a lâmina do senso de humor satírico.
Mas o sucesso comercial não era pra ela. Quando os agentes começaram o papo de turnê e entrevistas e publicidade, ela disse não. Essa gente quer controlar o que você fala, como se veste, o que faz no público e no privado. Isso não era pra ela. Por isso a gravadora cortou o investimento em publicidade, focou em artistas mais atraídos pelas vantagens e desgostos da fama, e Take a Picture foi lançado sem ninguém ficar sabendo, a ponto de ser um segredo bem guardado nos anos 1970 e uma joia fossilizada debaixo da terra nos anos 1980. Margo voltou a viver de suas composições e passou a dar aula de música. Uma vida tranquila, anônima, inconsciente de que tinha gente correndo atrás dela, gente que foi influenciada por aquele disquinho obscuro.
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Lavei o rosto e desci até a biblioteca. Circulei pelas estantes, observado por Tecla, uma gatinha calico, de início, desconfiada, falante. Eu não poderia sair dali sem antes fazer amizade com ela. Peguei de curiosidade um livro do César Aira, essa máquina argentina da ficção, mais de 100 livros publicados em 60 e tantos anos de vida, aquele que desafia o mais intenso dos colecionadores. À noite, descemos até uma padaria. Comprei dois pães de queijo e me uni a todos para o jantar, na mesa de madeira, cercado pela mata, ouvindo os ruídos da noite e pela primeira vez, entre desconhecidos, conversei sem interpretar um personagem e me senti compreendido. Voltei reanimado ao chalé, certo de que não conseguiria dormir. Não costumo dormir bem fora de casa. Mas dormi e acordei com os berros de um galo maluco, que não parou de avisar da presença do novo dia até umas cinco da tarde. Tinha memorizado alguns movimentos do yoga, fiz uma sequência breve pra esticar os músculos e me aquecer. Tomei um banho e fui pra varanda ler um pouco, enquanto aguardava o sino avisar o café da manhã. Foi quando Tecla, vá saber como, deu um salto até a varanda pra me fazer companhia.
Tecla que, por sinal, é uma Joyce invertida. Pequena, nada bruta (sem ofensas à Joyce, eu gosto da atitude mais séria e mandona dela), falante. Joyce que em poucas horas se esconderia da babá que eu chamei para cuidar dela nesse dia de ausência.
Tomei um longo café com omolete, pães, queijo feito numa fazenda próxima dali, geléias feitas na pousada, sucos. Aproveitei como se fosse uma última refeição, como toda a refeição deve ser aproveitada. Sem que eu soubesse, mosquitos tratavam minhas pernas igualmente, como uma última refeição. Mais tarde eu percebi. Ainda carrego algumas das marcas.
Passei um tempo conversando com a Patrícia, companheira de Cristiano, conhecedora de todas as plantas. Ela me explicou a origem do que eu estava comendo, me mostrou os vasos onde estavam plantadas a cebolinha e a ora pro nobis dentro do meu omelete. Me contou um pouco da jornada dela e do Cristiano, até chegarem ali na pousada e na tipografia, enquanto eu reclamava do meu trabalho. Então ela me disse algo que eu já ouvi várias vezes, mas que fez efeito pela primeira vez. Que o que a gente faz da vida importa menos do que como a gente transforma esse trabalho, que o meu trabalho permite que eu pague pela minha faculdade, e isso vai me levar a coisas novas. É um meio, uma passagem. Decidi caminhar pela cidade depois disso, sem saber que, nesse mesmo instante, eu subestimava a dificuldade da subida de volta à pousada e superestimava meu condicionamento físico.
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Nos anos 1990, de acordo com o filho de Margo, cheques de royalties começaram a aparecer. Vinham de uma distribuidora japonesa que pirateou Take a Picture. Não me perguntem por que uma distribuidora pirata se dignou a pagar a artista detentora dos direitos autorais - achei bonito e justo. Acontece que lá no Japão ela tinha se tornado um sucesso de público e crítica e o disco dela era muito requisitado, eles queriam saber se tinha mais. Mas ninguém se interessou em fazer mais até lá pelos anos 2000, quando realmente todas as pessoas que se inspiraram na música de Margo decidiram passar um pente fino em tudo que ela havia gravado. Foram lançadas as demos, Take a Picture voltou às lojas, depois uma coletânea reunindo a obra completa. Margo deu entrevistas e até lançou umas canções novas. Dito isso, ela ainda não tinha interesse na fama. Ficou feliz de ter sido descoberta - a mídia dizia “redescoberta”, mas ela rejeitou o “re”, afirmando que até então ninguém nunca tinha se dado ao trabalho de a descobrir em primeiro lugar.
Margo Guryan faleceu em 2021, descoberta e ciente da influência da obra dela, sem arrependimentos de ter resistido às imposições da indústria musical, ao que tudo indica, bem satisfeita com uma vida discreta. E agora vocês estão sabendo também.
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Cheguei de volta à pousada por volta das 13 horas, levando o sol do meio-dia todo no lombo, exausto depois de uma subida mais íngreme do que o estimado durante a descida. Fui recebido por duas perguntas: por que você não ligou pra gente te buscar? e você já alomoçou. Almocei antes da subida, no mesmo restaurante do dia anterior. Mais tarde fiquei sabendo que eles tinham a intenção de me convidar para o almoço. Não estavam acostumados a lidar com um sujeito que precisa planejar cada detalhe dos dias futuros, mesmo ele estando ciente de que é péssimo nas suas previsões. E eu percebi, mais uma vez, o quanto eu não permito a ajuda de outras pessoas. Sempre fiz tudo sozinho e não consigo vislumbrar outro jeito de fazer as coisas. E, mais tarde, depois de uma longa e desnecessariamente complicada jornada, escuto de pessoas próximas: por que você não falou nada?, eu podia te ajudar.
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Durante aquela tarde terrível de quente em Rodeio, conheci a tipografia, mas isso eu vou deixar pro Cristiano contar pra vocês. Porque aquela noite eu passei conversando com o pessoal da pousada e ensinando o Cristiano a montar um Substack. Imaginem uma newsletter sobre tipografia e produção artesanal de livros. Fica registrada a intimação e vocês fiquem avisados. Um a um eu boto em andamento meu plano para ensinar a minha região da existência das publicações online. É o começo do meu império cultural. Os Órfãos do Bug do Milênio ainda terão muita influência, vocês me aguardem.
Os órfãos do bug do milênio. Hahahaha adorei.
Que grande aventura. Muito bom esses momentos afastados da cidade.
É primavera, os bichinhos estão animados e conversadeiros.
Um beijo
obrigada por ativar minha obsessão para os próximos dias. estarei desbravando a discografia inteira de margo ahahah