Muita informação, nada a dizer
sobre como Mitologias, do Roland Barthes, me ajudou a entender minha inconclusividade sobre tudo isso aí que não para de acontecer. E Henry Green.
Previsão do tempo, com seu amigo tio Rapha
Boa tarde. Hoje é domingo, dia 22 de setembro de 2024. Aqui em Itajaí, céu mais azul impossível. O dia inteiro foi ensolarado, um verdadeiro anúncio de primavera. Indícios de um calor digno do cu de Belzebú nesse verão, com certeza, mas vamos aproveitar enquanto está tolerável. Quer saber, pode parar tudo. Vou ali fazer uma caipirinha. Eu tenho limão, eu tenho cachaça e açúcar e gelo. Não preciso ficar aqui sentado passando vontade, imerso na preguiça. Já volto.
24° graus de sol aliviado por aquela brisa refrescante do litoral. Tudo isso aproveitado da segurança e conforto de minha casa, ignorante às obras nas ruas e ao caos dos tempos de eleição.
Gente amiga, vamos falar de coisa boa? Acho que ainda não falei pra vocês que escrevi um livro ou, se falei, não estou lembrado. Pois é, escrevi e ainda por cima o publiquei, uma tiragem de 300 cópias. O nome é Rádio de Pilha. E você não só pode comprar, aliás, indico bastante que compre enquanto há tempo, até porque está em promoção. Mandando um e-mail para raphaelsalcedo@gmail.com dando sinal da intenção de compra, ou só uma mensagem por aqui mesmo (basta falar comigo, não importa o meio), eu peço seu endereço, você me manda um pix e eu te envio o livro por correio. Tudo isso por apenas 35 reais - Só 35 reais?!
Isso mesmo - 35 reais. Já viu livro recém-lançado a esse valor? Em 2024? Eu não. Livro de 172 páginas, bonito, deve nada às grandes editoras do país.
E o frete, tio Rapha?, você deve estar se perguntando.
Ora, o frete é por minha conta. Mas isso é só até 11 de outubro. Depois disso acabam minhas férias e voltaremos ao preço de sempre, com o frete cobrado pela editora. Aproveite e compre o livro menos discutido, portanto com maior potencial, da temporada.
Roland Barthes
Desde o começo das minhas férias, tenho me ocupado com a leitura de Mitologias, do Roland Barthes. Um livro de ensaios (a crônica pretensiosa dos gringos, como nós aqui em casa costumamos chamar a forma), dentre os primeiros desse autor que muito admiro, como filósofo, crítico literário, polemista e farsante. O livro tomou papel de leitura matinal, para o café, o que combina, afinal os textos foram publicados em revistas diversas ao longo dos primeiros anos da década de 1950. A intenção era analisar as diferentes imagens presentes no cotidiano francês, da burguesia de então, e, em seguida, compreender de que tratam as mitologias do contemporâneo. A primeira parte, composta de ensaios que vão da luta livre (tida como catch pelo povo da camembréia) até os comerciais de sabonete, passando pela tentativa de Billy Graham de evangelizar os pagãos franceses, entre tantos outros assuntos datados e não.
Ainda estou na metade do livro, nem cheguei na dissecação, propriamente dita, das mitologias. Li cerca de 30 dos 40 e tantos ensaios da primeira parte. Se o que foi dito até aqui te chamou atenção, sugiro que leia. Dos livros sobre semiologia, esse parece um dos mais acessíveis e talvez o mais acessível do autor, visto que são textos sobre o cotidiano para o leitor de revistas e jornais dos franceses. Fora o material datado, cuja obscuridade pode ser resolvida com uma breve pesquisa, o conteúdo ainda tem cabimento nos tempos de hoje. A análise, por exemplo, dos briquedos dados às crianças da França dos anos 1950, o império do plástico, que tirou a madeira do campo das brincadeiras infantis, por exemplo, é bastante atual. Mas não foi isso que me fez querer falar desse livro, o que me impressionou foi a variedade dos temas e a maneira coerente que Barthes utilizou para tratar de cada um deles. Não acredito que isso seja apenas uma questão da suposta genialidade do autor, nunca é assim tão simples, afinal, a mesma observação seria válida para boa parte das pessoas das letras contemporâneas de Barthes, como Joan Didion, Susan Sontag (as duas geniais, mas dizer que isso basta seria diminuir a genialidade de todas essas pessoas) e mais. Tem algo, creio eu, da época, que permitia uma análise tão ampla e, ao mesmo tempo, tão precisa dos assuntos correntes.
No primeiro dos diários de Susan Sontag, em uma das entradas, ela lista os filmes que estavam para sair e que ela tinha vontade de ver. Quem, entre nós, na década de 2020, consegue listar filmes? Vocês tem essa capacidade? Sou só eu que fico embasbacado, paralizado, com a quantidade infinda de estreias, seja nos cinemas ou nos aplicativos de streaming? - estes últimos cada vez maiores em variedade, menores em qualidade e mais influentes que o cinema como espaço físico. Ela faz o mesmo com livros e artigos a serem lançados em revista. Outra impossibilidade para qualquer vivente dos nossos tempos. Faltam os números concretos para que eu faça uma afirmação desse porte, mas não acho incoerente aproximar que nacionalmente, em uma semana, são lançados, seja por editora seja independemente, uma quantidade maior de livros do que qualquer um seria capaz de ler em uma vida. Poderíamos dizer que a maioria não vale a pena ser lida, mas de qualquer forma, estamos falando de quantidade e todo mundo sabe que produzimos, hoje, em um dia, uma quantidade de informação equivalente a alguns séculos da história da humanidade.
A quantidade absurda de informação produzida na contemporaneidade não impressiona mais ninguém, se trata de um fato amplamente divulgado e apreendido, mas esse é outro ponto. Estamos, pelo menos posso falar por mim e dizer que estou, dessensibilizados por essa quantidade esmagadora de informação. De questões ambientais e da humanidade estar há décadas na via expressa da extinção, até a prisão de influencers, até a existência em si dessas figuras chamadas influencers, da morte do Sílvio Santos até a cadeirada do Datena, o que não nos falta é material para análise. Nossas mitologias são elaboradas e modificadas de hora em hora, ninguém consegue acompanhar a quantidade de novos símbolos lançados no imaginário popular e estamos mais que habituados à aparição contínua e constante de significados sem significantes, de mapas sem território, de simulações de simulações em simulações. Não tem cu que aguente. Tudo acontece o tempo todo e não há nada de inteligente a se dizer sobre isso.
Henry Green
Lá quando eu era um jovem no começo dos meus vinte e poucos, tomei conhecimento da Paris Review e do acervo de entrevistas com gente literária notável que o site deles guardava. Naqueles anos, o acesso era gratuíto e matei algumas horas de trabalho com a leitura dessas entrevistas, eu que então era um aspirante a escritor, que mantinha um blogue lido por ninguém, resistia à existência do Youtube (ou qualquer outra forma de publicação online além da escrita), e achava que conhecer melhor as ideias e métodos dos grandes nomes me faria aprender alguma coisa. Sendo justo com meu jovem eu, nada mudou e eu aprendi. Aprendi que a literatura é sim um circo e ninguém sabe porra nenhuma do que está fazendo e o negócio é ter bons agentes ou cair nas graças de quem tem bons agentes.
Diga o que for da publicação, é um belo acervo histórico, que persiste e, com o passar das décadas, se atentou a diversidade das pessoas entrevistadas. Infelizmente, hoje só uma entrevista por dia é disponibilizada gratuitamente (a da vez é a Anne Carson), mas creio que uma boa parte esteja disponível em tradução, online. Não todas, porque nem todas são relevantes. E, deixando de lado a ingenuidade da juventude, é fato que eu descobri muita gente graças a essa publicação e que ela sustentou as bases do meu amor pela literatura.
Nunca entrevistaram um brasileiro, logo é uma revista de merda, não assinem.
Indo direto ao ponto, uma das entrevistas que li foi de um certo Henry Green. Uma entrevista antiga, dos anos 1950, conduzida pelo Terry Southern - e naqueles anos Henry Green já tinha produzido sua obra completa e se dava por aposentado (graças ao dinheiro da família, ele que era da nobreza da Inglaterra, afinal seus livros não venderam nem 10 mil cópias cada um, enquanto ele era vivo). Lá estava um autor desconhecido, sem um livro em impressão, que diria traduzido, no entanto todos os comentários publicados sobre ele mostravam tamanha admiração, os maiores nomes da literatura inglesa (gentes das mais arrogantes e egocêntricas) o colocavam como o melhor de todos; até mesmo o entrevistador parecia estar diante de um de seus deuses pessoais e não apenas um idoso, escritor aposentado, que precisava parar de beber.
Não bastasse, em lugar nenhum eu encontrava trechos dos livros dele, uma frase que fosse para justificar tamanha adoração. Lá estava eu, lendo uma entrevista das mais banais, com um autor que, aparentemente, era o autor favorito de todos os escritores mais conhecidos da Europa e ninguém sabia quem ele era e nenhum de seus livros parecia disponível. Isso só fez atiçar minha curiosidade juvenil.
Anos se passaram e eu ainda cultivava o desejo de ler aquele autor. Não foi até uma das minhas viagens a trabalho, em 2019, que eu achei 3 dos romances dele compilados em um só volume, esquecido no meio das estantes de um sebo vá saber havia quantos anos. Comprei imediatamente e, como não poderia deixar de ser, guardei na minha estante e ele ficou lá, até agora, ignorado, porém não esquecido. Como são as coisas, não? Uma década de sede, em busca de água e, quando finalmente encontrei uma fonte, guardei pra depois.
Como eu detenho o controle da narrativa e com o poder do retrospecto direi que não foi porque perdi a vontade de ler o livro uma vez que o tinha em mãos, a demora foi porque eu estava esperando a hora certa e ela chegou. Afinal, eu imaginava um livro complexo, exigente … chato. É, eu tava com medo que fosse chato. É meu preconceito com os britânicos.
Com tempo de sobra, comecei pelo começo, o primeiro da coletânea: Loving. A tradução dos títulos dos livros dele é um assunto complicado. Parece simples, um verbo no gerúndio; quase todos seguem esse padrão, uma palavra, um verbo, palavras que, quando assim em isolamento, se abrem à ambiguidade: Living, Party Going, Loving - em vez de considerar só o gerúndio, prefiro, para esses livros, quando esses verbos são usados para definir a essência dos seus significados, ficando então: Viver, Ir às Festas, Amar.
Loving é a história dos serventes de um castelo, no auge da Segunda Guerra Mundial. Mais um livro britânico sobre a mordomia, tal qual Vestígios do Dia, do Ishiguro, que não li, mas vi o filme. Se o filme serve de referência, Loving só se parece com Vestígios do Dia em cenário. Começa com o leito de morte do mordomo, acompanhado de sua fiel assistente Agatha. Enquanto ela cuida daquele senhor em suas últimas horas, o possível sucessor do mordomo, Charley, planeja com seu jovem assistente, Albert, um jeito de distrair Agatha para que os dois possam roubar uma dose de uísque do gabinete do velho. É assim, uma comédia de costumes, uma sátira social, um retrato em dois planos da nobreza decadente e da classe trabalhadora que garante o polimento dessas decadências. Não é nada chato. Também não é o que eu esperava. É um livro maravilho, sutil, cuja técnica, embora abundante, não faz questão de se aparecer.
A história avança sem interrupções de capítulos, corta de um ponto de vista para outro, e a narração faz pouco além de descrever os cenários e os gestos e movimentos das personagens. Não temos acesso ao íntimo dessas figuras, nem seus passados, muito menos seus inconscientes, salvo por vagas insinuações, normalmente presentes nas vozes das personagens. E eu digo vozes porque nunca li diálogos tão bons na minha vida. Henry Green é uma aula de diálogo. Cada personagem tem seu ritmo, suas palavras de preferência, seus vícios, suas variações. Raramente as falas são atribuídas, e não precisam ser, porque lá pelo primeiro terço do livro nós já estamos familiarizados com cada voz, como se as pudéssemos ouvir, como se essas figuras estivessem ali, vivas na sala, e nós não passássemos de bisbilhoteiros, nessa história que é basicamente uma sequência de bisbilhotagens e fofocas.
Essa minha mania de ler bastante e estudar literatura me deixou calejado. Existem livros que me mergulham em suas histórias, sim, mas é difícil eu me entregar a essas vidas e me apegar a personagens. Loving conseguiu, eu estou entregue a história e adoro cada personagem. Cada uma delas é tão complexa e inteira, até a dona do castelo é hilária na sua indiferença às pessoas que cuidam de cada detalhe da vida dela. A sátira aparece no ponto certo e o humor é perfeito - o que é difícil de fazer na literatura. Infelizmente ninguém traduziu essa merda. É um livro difícil de conseguir e caro na loja do careca. Só compartilhei isso aqui porque realmente estou encantado e pretendo ler Living e Party Going logo em sequência, na esperança de encher o saco de Henry Green, pra não ter vontade de ler nenhum outro dos livros dele.