Kafka e a boneca - uma investigação
Reciclando um texto de 2021 sobre a veracidade de uma história reciclada anualmente no submundo da viralização
Dia errado, hora errada - foi instalada a anarquia
Boa noite. Hoje é sábado, 31 de agosto. Ninguém disse que essas postagens precisam sair aos domingos. Eu poderia agendar a postagem, não fosse esse meu apego ao presente, ao instante da escrita. Pra mim, é parte da essência de uma newsletter; existe um contato pessoal, você recebe esse texto direto no seu e-mail e fingimos uma conversa ou eu monologo para você por algo entre 10 e 20 minutos, dependendo da minha disposição. Você pode falar se quiser, seja aí, para você, comentando em subvocalição a leitura como se fosse resposta, ou, mais tradicionalmente, deixando um comentário escrito com suas impressões, que eu tenho toda a intenção de responder. Por gostar desse joguinho, dessa ilusão de diálogo, prefiro não agendar. Tenho apego também às minhas incoerências e, bem ou mal, me esforço para as justificar.
Aqui em Itajaí, esquentou um pouco. Ou meu corpo se acostumou ao frio da temperatura próxima dos 10°C, tanto que um dia nublado como hoje, meio úmido, de 21°C, parece quente. Eu não quis sair de casa. Estou bem cansado. Alguns problemas envolvendo o estágio (o contrato não foi assinado pelas entidades responsáveis, então o problema com o estágio é ele ainda não ter acontecido). Amanhã preciso fazer um trabalho pra faculdade, continuação do de semana retrasada. Amanhã, porque não quis fazer hoje: eis o motivo da mudança de data da newsletter. Se você analisar profundamente esse motivo, vai ver que ele não faz muito sentido. Eu sei. E não me importa, eu vou fazer com que ele faça sentido, procrastinando o trabalho da faculdade até a última hora de amanhã. E, sim, eu vou planejar hoje a minha procrastinação de amanhã. Lide com isso da mesma forma como eu estou lidando, simplesmente sem lidar.
Não quer dizer que eu pretenda fazer toda uma edição continuando a de semana passada, como eu prometi que ia fazer. Melhor que isso, vou reciclar um texto velho, de 2021, sobre a anedota envolvendo Kafka, uma menina e a boneca que essa menina perdeu enquanto brincava no parquinho. Essa anedota já viralizou esse ano? Outono-inverno são boas temporadas para viralizar anedotas sobre o Kafka, a cara dele combina com esse tempo. Não viralizou? De repente eu ajudo, antes que chegue a primavera.
Entrem no túnel do tempo e leiam “Kafka, a menina e a boneca - uma investigação” …
MAS PRIMEIRO
Eu escrevi um livro. É um livro de contos. Um livro decente. Vai ser a melhor leitura da sua vida? Espero que não. O importante é que não vai ser a pior. E a vida é feita de leituras medianas, cheias de altos e baixos. Uma vida marcada por livros magníficos seria chata. Você perderia noção dos seus padrões de qualidade. Aceite o razoável, abrace os irmãos “Até que é bom” e “poderia ser pior” e me ajude a alimentar minha gata, que come mais quando o tempo esfria. Você diria não pra essa carinha? Eu também não consigo.
Por isso, não perca mais tempo e compre meu livro (segundo link pra fidelizar). E eu saio de férias dia 12 de setembro, então, se não quiser, você pode estar comprando sua cópia diretamente comigo e eu estarei te enviando, entre 12 de setembro e 12 de outubro. Isso ou você pode me achar na Flipomerode, entre 12 e 15 de setembro. Mais sobre isso na próxima edição, mas já adianto, não fui convidado pra porra nenhuma, vou na cara e na coragem oferecer meu livro a quem estiver lá.
Agora sim.
Kafka, a menina, a boneca - uma investigação1
Originalmente publicado em 10 de maio de 2021.
Começou no instagram. Alguém que eu conheço compartilhou por story uma postagem de uma conta suspeita, dessas motivacionais que vivem viralizando histórias de procedência duvidosa. Mas essa em particular me chamou atenção. Ela mostrava uma ilustração do Kafka abraçado a uma menina, que segurava uma boneca, numa praça. Um desenho todo preto e branco, fora o casaco vermelho da menina. Imagem mais próxima de Tim Burton que de Kafka, como um sonho melancólico, um pouco bizarro e, ao mesmo tempo, fofo. A descrição na postagem contava um momento no último ano da vida de Kafka, em Berlim. Conforme a postagem, passeando por uma praça, ele viu uma menina chorando e foi perguntar o que era. A menina tinha perdido a boneca. Mais tarde, ele reencontra a menina e entrega uma carta a ela, escrita pela boneca, avisando que ela tinha decidido viajar. Kafka manda mais umas cartas, cada uma de um local diferente e, no fim, ele dá uma boneca nova pra menina, diferente da perdida, com uma última carta que explica as diferenças como um efeito da viagem. Evidentemente, a história terminava com uma “mensagem” emocionante. Algo como a passagem do tempo, o amor, as mudanças tão necessárias. Vocês conhecem o esquema da ordenha de lágrimas, ele é mais velho que o da pirâmide e ainda mais formulaico.
Como quase toda a história motivacional de instagram que jura de pé junto ser verídica, essa também me parecia falsa. É um caso muito preciso, com começo, meio e fim - excessivamente literário. A vida não é assim (nem as narrativas de Kafka). Ao contrário dos enredos montadinhos das anedotas motivacionais, que não só seguem uma receita de coerências, vêm com cobertura de lição e recheio de emoção, a realidade é cheia de improvisos, pontas soltas e não dá a mínima pra storytelling, que dirá para os seus sentimentos. E, claro, como não poderia deixar de ser, essa estrutura bonitinha tem motivo: é roubo. Tá, exagerei. Vou chamar de empréstimo. Essa postagem em si provavelmente não compartilha dessa origem, já que a história foi contada e recontada ao longo dos anos e eu imagino que seja só uma tradução de alguma postagem do instagram gringo, mas a ilustração vinha de um livro infantojuvenil chamado “Kafka e a Boneca Viajante”, lançado em 2006, por Jordi Sierra I Fabra. Um livro que conta uma reimaginação dessa mesma história. Se tem as mesmas conclusões motivacionais, eu não sei, não o li. Mas o enredo é o mesmo, sobre a mesma boneca perdida, a mesma menina encontrada por Kafka, as mesmas cartas e a mesma praça e o mesmo banco e as mesmas flores e o mesmo jardim.
Por que essa história viralizou internacionalmente nas redes sociais em 2021?
Essa é uma boa pergunta.
Uma hipótese viria do lançamento de um livro infantil (ou história em quadrinho) chamado “Kafka and the Doll” [Kafka e a Boneca, caso você não seja fluente em latim], em março de 2021. Mas essa data é posterior a algumas dessas viralizações e não explica as aparições muito anteriores dessa mesma história. Marketing? Até é plausível que uma campanha tenha acontecido nas redes sociais, envolvendo essa história, para esse livro, e isso tenha caído nas mãos do povinho motivacional brasileiro e, nessa reciclagem, tenham usado ilustrações do livro errado. Ou seja, faz pouco sentido e não deve ter sido um sucesso.
Façam, comigo, a contagem. Até agora temos uma (entre inúmeras que sou obrigado a presumir) postagem mais ou menos viral e dois livros, sobre a mesma história. Em minhas pesquisas, descobri que, entre as contas de instagram dos EUA, Inglaterra e Brasil, várias usaram o mesmo tipo de postagem, com basicamente o mesmo texto - e isso se viu também no facebook e no twitter (vulgos meta e x). Aparentemente, anedotas envolvendo escritores mortos são de domínio público, ou seja, carta branca para meu romance infantojuvenil sobre o dia que Yukio Mishima tentou esnobar Osamu Dazai, mas o tiro saiu pela culatra quando Dazai caiu na risada. Boas notícias.
Acabou, né? Resolvido o mistério, veio de um livro de 2006 e o resto é instaglória. Errado. Esse causo deu voltas em torno do imaginário popular diversas vezes. Sua “primeira” versão foi publicada em uma biografia de Kafka, por Ronald Hayman, em 1982. Eu nem sei dizer se Ronald citou suas fontes porque não encontrei sequer um pdf desse livro, em fontes corsárias.
Em 1984, Anthony Rudolph, jornalista do Suplemento Literário do Jewish Chronicle, leu esse livro e, inspirado, recontou a história. Eu não sei exatamente o que no artigo dele faz uso do livro de Hayman, já que o artigo é escrito como algo autoral; quem diz que a inspiração veio do Hayman é a checagem de fatos da Snopes. Rudolph menciona as fontes, mas não direciona citações. De início, o artigo parece mais interessado em contar a história da relação de Kafka com sua última parceira, Dora Dymant, é só no final que o autor parece traduzir a versão de Dora sobre a história de Kafka e a menina da boneca perdida, tirada de um artigo de Marthe Robert, tradutora de Kafka para o francês, sobre Dora Dymant. Mas isso significa que … eu cometi um erro em 2021 e agora o Raphael de 2024 tem que trabalhar.
Calma, eu não tinha percebido isso antes. Como eu falei, pra checar os fatos da postagem de instagram eu usei de fonte o site de checagem de fatos Snopes. Li as fontes, mas só agora eu reparei que o texto de Anthony Rudolph cita as suas fontes, entre elas Hayman e um artigo publicado na revista Évidences (nº 28, de novembro de 1952), sobre Dora Dymant, por Marthe Robert. Essa história de Kafka, da menina, da boneca, logo, existe desde 1952. Não muda nada minhas conclusões sobre isso, só torna a coisa bem mais antiga. Também não serviu para trazer novos detalhes, já que o texto de Rudolph não faz mais que traduzir a versão da anedota contada por Marthe Robert. Meu francês é vergonhoso, mas eu achei o artigo original da Marthe, escrito na ocasião da morte de Dora, e nele a autora transcreve umas notas sobre Kafka encontradas nos cadernos de Dora, assim como umas histórias que Marthe ouviu diretamente de Dora.
A versão de Dora para Marthe é parecida com a que se reproduz por aí, sem a mesma lição motivacional. Nessa versão, Kafka também não dá uma boneca nova para a menina, mas escreve uma carta final, em que a boneca se casa e explica que, depois disso ela não vai continuar mandando cartas. Notícia à qual, de acordo com Dora, a menina reagiu muito bem, tendo esquecido a dor da perda, tão entretida estava com as cartas. A versão em que Kafka dá uma nova boneca à menina também foi relatada por Dora, aparentemente a única testemunha ocular do evento que não seja anônima - a menina nunca apareceu para falar sua versão -, essa alternativa ela contou para Max Brod, que a publicou em algum dos textos biográficos sobre Kafka escritos por esse amigo dele. Tudo me leva a crer que uma dessas é a fonte de Hayman.
Nem Marthe nem Brod teriam motivo para inventar essa história, mas é válido apontar que as evidências começam e terminam aqui, na fragilidade da tradição oral. Na versão de Marthe ela deixa claro não ter lido nada disso nos cadernos de Dora, ela apenas ouviu a história e anotou palavra por palavra, que ela reproduziu em primeira pessoa, entre aspas, como se saísse direto da boca de Dora, em seu artigo de 1952. Eu não encontrei o texto de Max Brod. Dora contou duas versões diferentes do evento para duas pessoas diferentes, até aí tudo bem, a memória é frágil, quem seria capaz de lembrar se uma nova boneca foi ou não comprada? Ainda acho tudo muito literário, mas a minha opinião também tem pouco valor e é bem possível que isso explique por que, desde 1952, essa história não foi esquecida.
Guy Davenport, ao ler a biografia de Kafka por Ronald Hayman2, foi tão afetado pela anedota que, sem se importar se era verdade ou não, escreveu o conto “Belinda’s World Tour” [Volta ao Mundo de Belinda], publicado na coletânea “A Table of Green Fields” [esse título é mais difícil de traduzir, table pode ser mesa, tábua, tablado; Green Fields é Campos Verdes - qual table faz mais sentido, eu só saberia se lesse o livro, o que eu não fiz], de 1993. Aqui, a ficção toma conta. A menina tem um nome, Lizaveta, e a boneca também, Belinda. Lizaveta perde a boneca, mas num parque em Praga, e não é encontrada por Kafka, mas fica tão abalada com a perda que seus pais decidem convidar à casa um certo Herr Doktor Kafka, do escritório de Praga da Assicurazioni Generali, para dar uma olhada nela. Assim o Herr Doktor decide escrever as cartas, que Davenport imagina e inventa. Ele escreve cada uma das várias viagens de Belinda, a boneca perdida, pelo mundo, até o dia em que ela encontra um boneco e os dois se casam. O importante, em Davenport, é a imaginação, a possibilidade literária em torno dessas cartas perdidas. O conto ser baseado em fatos é apenas um tempero, que o autor parece dedicado em alterar. Kafka encontrou a menina em Berlim, no ano de 1924. O conto se passa em Praga e, se Herr Doktor era funcionário da Assicurazioni Generali, então o ano é 1908. A transformação é proposital, um convite para que o leitor se esqueça ou nem perceba as origens da ficção e aceite a narrativa como novidade.
Em 2004, Mark Harman escreveu uma longa investigação sobre as cartas para a New England Review. Ele sabia tanto das versões contadas para Brod e Marthe, então fez uma longa pesquisa pelos arquivos de Berlim em busca dessas cartas, mas nem sinal. Paul Auster inclui Kafka e a boneca em um diálogo do seu romance Desvarios no Brooklyn, de 2005 – talvez a primeira versão da história que inclui uma “mensagem” sobre despedidas inevitáveis, saudades, perdas, mudanças e, principalmente, o poder da ficção, embora eu sempre tenha dúvidas sobre qualquer “primeira vez”.
De 1952 para cá, essa história foi contada dezenas de vezes, com diferentes intenções e mensagens, por biógrafos, escritores, jornalistas, psicanalistas até influenciadores. Evidências concretas do acontecimento, por outro lado, nunca apareceram. As cartas podem nunca ter sido enviadas à menina e foram queimadas junto de alguns dos manuscritos do Kafka (nem todos se salvaram), a menina pode ter sido vítima do holocausto (não se sabe a identidade dela, mas é possível que ela fosse judia, pelo menos na versão de Dora Dymant ela é) e, caso ela tivesse guardado as cartas, elas podem ter sido jogadas fora; a própria Dora teve seu apartamento invadido pela Gestapo, que confiscou alguns textos de Kafka - entre os quais as cartas poderiam estar guardadas. Ninguém sabe, as cartas podem aparecer amanhã ou nunca terem existido. É válido lembrar, quando Kafka fez as cartas, se fez, ele não era o nosso Kafka, a função-autor Kafka, representada por inúmeras obras que resistiram ao julgamento do tempo e alteraram os cursos da história da literatura. Ele era apenas um tal Franz Kafka, alguém que nós não conhecemos e que ninguém que o conheceu (fora Dymant e Brod - o segundo, uns diriam ser o criador do nosso Kafka) teria como saber o que ele viria a se tornar. As cartas, se pararmos pra pensar, só tiveram importância para a menina naquele recorte de três semanas, enquanto ela as recebia e lia. As cartas importam para nós porque o nosso Kafka foi inventado e continua vivo, cem anos depois da morte do tal Franz.
A verdade é pior que a ficção e a ficção não é mentira; ela é o ponto de equilíbrio no meio do caminho, o mundo mágico onde a faixa que separa o provável e o improvável desvanece. Nessa (possível) ficção, Kafka teria criado outra ficção para distrair uma menina da dor causada pela perda (ou só para fazer a menina parar de chorar e depois, pelas próximas três semanas, ele se viu obcecado pela função), e nós ignoramos as evidências e sustentamos a história, damos a ela novos significados, interpretamos conforme as nossas necessidades. Independentemente da realidade, a persistência dessa história é Kafka até hoje escrevendo cartas para a menina, que somos nós.
O que eu quero mesmo saber é como ainda não fizeram um filme disso.
Leituras complementares:
Artigo da Snopes que checa os fatos por trás dessa anedota: https://www.snopes.com/fact-check/franz-kafka-doll-girl-story/
A tradução em espanhol, do El Nacional, da história de Dora para Marthe: https://www.elnacional.com/opinion/kafka-y-la-nina-de-berlin/
O artigo de Marthe: https://www.bibliotheque-numerique-aiu.org/viewer/15696/?offset=38#page=43&viewer=picture&o=bookmarks&n=0&q=
Kafka e a Boneca Viajante, de Jordi Sierra I Fabra: link para a livraria de sua preferência. Ou google.
Kafka and the Doll, LarissaTheule: link para a livraria de importados de sua preferência. Ou google.
Desvarios no Brooklyn, Paul Auster: link para o sebo de sua preferência que tenha no estoque esse livro esgotado.
Reportagem do Anthony Rudolf: https://www.snopes.com/uploads/2021/03/1984-1-3934.pdf
Ensaio do Mark Harman: https://archive.is/SUaF3
Resenha do livro “A Table of Green Fields”, do Guy Davenport: https://www.nytimes.com/1993/11/15/books/books-of-the-times-kafka-the-lost-doll-and-other-games-of-allusion.html
O conto “Belinda’s World Tour”: http://www.krabarchive.com/ralphmag/HW/kafka.html – considerando a possibilidade de eu traduzir esse conto e postar aqui. Tenho os direitos? Não. Mesmo assim, o que poderia dar errado?
Ao contrário das outras vezes em que eu reutilizei um texto, este foi praticamente reescrito. Gosto do original, mas foi muito apressado e alguns trechos dessa história cheia de citações acabam se atropelando. Dá pra entender, só ficou sem emoção. Foi só um “x disse isso em …., y disse isso em ….”. Acho que dessa vez eu conectei melhor os pontos e encontrei algo importante e que me passou completamente despercebido.
É a única biografia de Kafka listada no inventário de documentos de Guy Davenport, deixados para a Universidade do Texas, por Guy Davenport Jr. Isso me leva a crer que foi nela que ele teve contato com a história. Como um filósofo grego, a única fonte que me interessa é a das conexões lógicas que as vozes na minha cabeça são capazes de forjar.
Famosa kafta.
Acho que li no orkut essa história. Lembro de ter me emocionado.