E como está a janela?
Bom dia. Hoje é 29 de setembro de 2024. Um belo dia ensolarado de primavera, aqui em Itajaí. O sol tem se esforçado para sair da anemia depois dos dias encobertos de fumaça. Céu azul, com poucas nuvens vagarosas aqui e ali, entre os prédios e construções. Os pássaros cantaram o dia todo, nem parece que essa cidadezinha aqui ingressou num lento processo autodestrutivo para se fantasiar de metrópole. Mas se eu saísse de casa, veria as máquinas, os frágeis troncos recém plantados de futuras árvores despontando da terra batida e das pedras que um dia voltarão a ser calçada. Antigamente, na praça do Museu Histórico (busca no google umas fotos do Museu Histórico de Itajaí, você vai entender melhor), havia tantas árvores, uma banca de jornal e uma pequena barraca de camelôs ali no meio. Era antigo, rústico, as árvores rompiam as pedras e forçavam o chão urbano a se adaptar às suas raízes. Nem sempre o feio desagrada nossas sensibilidades. Existe essa noção de beleza, higiênica, plana, brilhante e ó tão moderna, tão antiquadamente burguesa quanto o próprio conceito de burguesia, que fere bem mais os olhos de qualquer pessoa mais atenta aos gritos das almas dos espaços públicos do que a presumida feiúra da desordem. Enfim, arrancaram todas as árvores menos uma, trancaram os camelôs num ambiente fechado, e bancas de jornal deixaram de existir. Construíram um anexo de pedra e vidro, muito bem intensionado, não por isso menos feio, atrás do casarão tombado do Museu, e planaram a praça em cimento branco parecendo uma chapa quente em dia de verão.
Uma viagem
Amanhã pegarei um ônibus rumo a Rodeio, para passar uns dias numa pousada no meio do mato. Estou tenso por sair da rotina, sim, mas está feito. A passagem de ônibus está comprada, a hospedagem reservada, dessa vez eu não fujo de mim mesmo. Tem um tempo que digo a mim mesmo que preciso sair do cenário urbano, fazer o que nunca fiz e ir pra floresta, tocar a grama, abraçar uma árvore, quem sabe ver um rio e molhar minhas mãos nele. Cresci numa cidade em que até a orla da praia foi obra de devastação e a cidade que adotei recusa a natureza quase tanto quanto. Quem sabe essa mudança de ares me ajude a entender o que tanto me trava, por que eu pareço estar mais paralisado hoje contra qualquer coisa que me tire de casa ou interrompa minhas rotinas do que estava uns anos atrás. É a pousada de um professor da faculdade, tem uma biblioteca lá dentro, uma editora, uma tipografia. Eu deveria estar maravilhado com a oportunidade. Não estou, passei os últimos dias me segurando para não cancelar tudo. Agora eu só quero estar entre as árvores, sentar no chão e respirar um pouco. E principalmente, quero voltar pra casa. Nem vou levar meus cigarros.
Falar de livros
Minha psicóloga diz gostar de me ouvir falando de livros. Um dos poucos momentos em que eu consigo descrever como me sinto sobre as coisas, deixo amostra as rachaduras da minha carapaça protetora. Aqui, eu hesito. Não por não gostar, mas por não querer estragar a experiência de ninguém. É tão raro a gente se entregar a qualquer obra de arte em ignorância e, quando se fala sobre um livro, mesmo se se evite as análises, algo é revelado do segredo entre a capa e a contracapa. Não deixa de ser bom ouvir de alguém que me leu que vai dar uma chance a um determinado livro. Aconteceu quando falei do Kurt Vonnegut, em várias edições anteriores e distantes, aconteceu quando falei do Henry Green, semana passada. Venero a fermentação por me identificar com seus processos, as coisas me ocorrem devagar. Depois de responder aos comentários na edição de semana passada, dias depois, quando a conversa parecia esquecida, me veio: o que eu tenho de fazer pra convencer um de vocês a comprar meu livro? Como pode … eu consegui fazer alguém se interessar num romance de 1945, dum obscuro inglês modernista tardio, sobre as relações entre servos e nobres no auge da Segunda Guerra, livro este lido por uma centena de pessoas e que, apesar da localização histórica, tem como principal conflito o sumiço de um anel de safira. O meu simples livro de contos, que demorei 8 anos para completar … enfim, a promoção ainda é válida, até dia 11 de outubro. Mandem uma mensagem aqui ou um e-mail para raphaelsalcedo@gmail.com - 35 reais, frete grátis.
Aqui o que um poeta, leitor, que a essa altura já considero um amigo, disse sobre o livro:
Não se assustem com o “intelectual”, tenho certeza de que ele não teve intenção de ofender. E, falando nisso, aproveitando que você lê isso aqui, quando você vai se juntar ao substack, começar a publicar por aqui? É um espaço bem bacana, cheio de gente interessada em mais poetas.
Um filme francês, de um diretor vietnamita, baseado em um romance suíço
O Sabor da Vida é um filme bem diferente dos últimos que assisti. Verdade, não estou a par do que tem acontecido no cinema, fora o documentário sobre o Velvet Underground, do Todd Haynes, lançado em 2022. Por indicação, vi esse O Sabor da Vida (La Passion de Dodin Bouffant, de Ahn Hung Tran) e tenho algumas observações, mas, me valendo do mesmo que disse sobre falar de livros, talvez você prefira ver o filme antes. Quem me indicou não me disse nada além de que eu deveria assistir e, no começo, fui surpreendido por três pessoas, em uma cozinha do século XIX, preparando uma longa refeição. Nada sobre as personagens em cena, quase nenhum diálogo fora os raros “me passe tal coisa, por favor” ou “com licença” ou “prove isto aqui”, nem sinal de trilha sonora.
Tinha visto a adaptação de Norwegian Wood, do mesmo diretor, uns anos atrás e o mesmo que vi lá se repete aqui, tudo é muito bonito. É uma experiência sensorial completa. É possível sentir os cheiros, o calor da cozinha, a textura dos alimentos, as combinações de sabores, através da tela, por meio dos gestos, das expressões e, em parte infelizmente, das palavras das personagens. Assim como em Norwegian Wood e, da mesma forma, provavelmente não por culpa do diretor (também roterista) ou de qualquer um envolvido na produção, o fraco do filme é a história - baseada, também, em um livro. Eu poderia passar múltiplas edições dessa newsletter maldizendo Haruki Murakami, o livro que inspirou O Sabor da Vida, no entanto, não li. Conforme o retratado no filme, digamos apenas que é uma história esperada. Sendo justo, é bem típica dos dramalhões do século em que o livro foi escrito, nada de pior nem de melhor. É uma história que está ali e não necessariamente precisaria estar, o filme se daria bem sem ela, com apenas aquelas personagens cozinhando para diferentes eventos.
O que até me agradou do roteiro foi o jogo entre alguns aspectos sociais da época, que dialogam com o mundo atual da gastronomia. Caso você ainda não tenha percebido, a alta gastronomia é e sempre foi um mercado de luxo e de exclusividades. Deixemos de lado, por um instante, o respeito de Dodin (protagonista) para com sua equipe, a cozinheira Eugénie e a jovem faz-tudo Violette, e deixemos de lado o romance entre Dodin e Eugénie que justificaria a leveza nas relações de trabalho, acho improvável que um casarão da alta burguesia francesa mantivesse tamanho grau de horizontalidade entre o senhor e as servas, a ponto de comerem da mesma comida e do senhor compartilhar das funções do serviço. Mas é romântico, ignoramos, evidências históricas não vêm ao caso. O filme, contudo, é pontuado por tantas outras marcas dessa exclusividade, dos vinhos franceses tradicionais (de vinícolas ainda existentes e que você pode experimentar pela bagatela de 1 mil reais - preço inicial - até 11 mil - daqui 10 anos, pois é essa a sugestão mínima de guarda dessas garrafas) aos champagnes recuperados de naufrágios às ostras com caviar, em O Sabor da Vida tais coisas são apresentadas como elas mesmas se apresentam: iguarias raras, apreciáveis apenas pelos paladares mais apurados - não como o símbolo que elas são. Há limites, claro, o mau gosto do Rei da Eurásia é satirizado, como alguém dado a excessos, entregue à autoindulgência da riqueza sem o devido refinamente e conhecimento necessários para se elaborar uma degustação.
Existe também o jogo do pós-iluminismo, a tentativa de equilibrar o fascínio transcendental dos prazeres com a técnica científica. À mesa, é servido para os senhores burgueses amigos de Dodin, um bolo recheado de sorvete, que se mantém frio pelo isolamento da camada de merengue (ou coisa assim) e é a ciência do processo que os impressiona. Enquanto isso, uma criança aprendiz (que em outra cena lista um por um os ingredientes de um molho complexo e demonstra seu talento) prova o mesmo bolo e quase, sem saber o motivo, chora de emoção. Dentro da mesma dualidade, Eugénie visita a casa da menina talentosa e vê a ciência nas plantações dos pais dela (gente, ao que parece, de uma camada mais baixa da burguesia). Com esse tom, o filme parece seguir o que é dito sobre o livro, uma combinação de romance, com história da culinária e retrato social pré-moderno, quase naturalista.
Eu gosto de cozinhar, acho o mundo da gastronomia assustador, tão repleto de curiosidades e maravilhas quanto de atrocidades. E, por acidente - nunca fui atrás disso -, tenho uma carreira de 15 anos no ramo alimentício, ou seja, vi de tudo, principalmente, visto que falo do mercado internacional globalizado, o que há de horrível. Vi crianças trabalhando na descarga dos barcos de pesca em troca de refeição, vi uma corporação gigante do atum enlatado ser denunciada por uso de trabalho escravo em seus barcos (e no ano seguinte ser premiada por seu combate ao trabalha escravo), vi o processo de produção do caviar ossetra; um dia eu falo sobre isso, pelo menos sobre os anos no mercado da pesca, já que falar do meu trabalho atual pode dar merda. A questão é que um filme como O Sabor da Vida é, sim, uma bela distração, cumpre seu papel estético. Assistir o movimento da cozinha, as técnicas, o cuidado com os produtos, é relaxante. E dá para ver o filme somente nesses termos. Mas, como eu tenho esse histórico no mercado atual e sei um pouco das movimentações econômicas por trás dos mercados de luxo da gastronomia e dos vinhos, a narrativa ganha outro sentido.
Intelectual sim, porque eu jamais teria tantas referências, pelo menos organizadas, de tantos outros mestres. Meus autores vivem em uma desordem maior que a minha hehehe
Fiquei interessado em conhecer essa pousada, espero mais detalhes lá na frente.
Estou pensando mesmo em escrever aqui.
E pra finalizar: cheguei em Itajaí pela primeira vez em 2004, ainda adolescente, lembro bem do que vc relatou ali do calçadão, lembro dos vendedores de suco com carrinhos em formato de laranja, do chafariz que tinha entre a Casa da Cultura e o Palácio. Hoje só em fotos. É a evolução?